Um país que medica mais do que escuta e por que precisamos falar sobre isso
Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), 9,3% da população brasileira vive com algum transtorno ansioso, cerca de 18,6 milhões de pessoas, a maior taxa registrada entre os países avaliados.
Diante desse cenário, os números revelam um desequilíbrio inquietante: a medicalização cresce em ritmo acelerado, enquanto o acesso à psicoterapia permanece reduzido. Dados do iCASM (Instituto Cactus + AtlasIntel, 2023) mostram que apenas 5,1% estão em psicoterapia, ao passo que 16,6% fazem uso contínuo de medicamentos psiquiátricos, aproximadamente 1 em cada 6 pessoas. Além disso, 19,1% consultaram psicanalista, psicólogo ou psiquiatra nos últimos 12 meses, mas, em muitos casos, por poucas sessões, sem continuidade suficiente para elaboração mais profunda.
O remédio como solução imediata (mas incompleta)
Não se trata de negar o papel fundamental da medicação. Em situações de crise, ela pode ser a forma mais rápida de conter a angústia e oferecer estabilidade mínima. Mas quando se torna a única resposta, algo se perde: o sintoma não desaparece, apenas se cala momentaneamente.
O resultado é um ciclo silencioso: o medicamento alivia no instante, mas, sem espaço para escuta, o sofrimento retorna. O que deveria abrir caminho para elaboração se converte em silenciamento.
Dados que não podemos ignorar
Esse movimento não é apenas clínico, mas também social. Segundo levantamento do Conselho Federal de Farmácia (CFF), com base em dados da consultoria IQVIA, as vendas de antidepressivos e estabilizadores de humor cresceram 36% nos últimos anos. O mesmo estudo aponta aumento de 21% na comercialização de anticonvulsivantes e antiepiléticos, muitas vezes utilizados como coadjuvantes em quadros graves de depressão.
Esses números falam de uma sociedade que busca calar rapidamente aquilo que, talvez, precisasse antes de tudo ser escutado.
O valor da escuta
A psicanálise mostra que o sintoma não é um defeito a ser apagado, mas um modo de dizer do sujeito, ainda que de forma enigmática. O sofrimento, portanto, não pede apenas alívio: ele pede escuta.
Nesse ponto, a diferença entre os recursos se esclarece:
- O medicamento contém a angústia, reduzindo sua intensidade.
- A escuta abre espaço para elaboração, permitindo que cada sujeito dê sentido ao que vive.
Não é uma questão de substituir um pelo outro, mas de reconhecer que cumprem funções diferentes. O risco está em reduzir o sofrimento à lógica do alívio imediato, impedindo que se abra espaço para transformação.
Uma geração silenciada?
Se continuarmos priorizando apenas a supressão do sintoma, corremos o risco de criar uma geração anestesiada, pessoas que pouco dizem de si porque aprenderam, desde cedo, que o sofrimento deve ser abafado.
Mas o sintoma insiste. Ele retorna, por vezes mais forte, para lembrar que há algo não dito. E quando não o escutamos, perdemos a chance de compreender o que ele aponta.
O cenário da saúde mental
Cerca de 70% da população brasileira depende exclusivamente do SUS. A Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) conta com aproximadamente 2,9 mil CAPS em todo o país, mas a cobertura não é suficiente para oferecer acompanhamento contínuo à demanda crescente.
Nesse contexto, as filas longas, a rotatividade de profissionais e a pressão por soluções rápidas fazem do medicamento o recurso que “cabe” no tempo institucional. A escuta, ao contrário, exige tempo lógico: aquele necessário para que o sujeito elabore, simbolize e produza sentido para o que vive.
Um olhar psicanalítico
A psicanálise não é contra os remédios. Mas questiona o imperativo de silenciamento quando a medicação ocupa o lugar da palavra. O problema não está em medicar, mas em substituir a escuta pela medicação.
Sob esse olhar, os dados não convidam a escolher entre pílulas ou terapia, mas a refletir sobre como, como sociedade, temos preferido calar em vez de escutar. O sintoma, afinal, é sempre um pedido de palavra.
Talvez hoje a medicação seja a forma mais rápida de conter o sentir, mas qual será o impacto, no futuro, desse silêncio produzido quimicamente?
Referências
Organização Mundial da Saúde — Brasil é o país mais ansioso do mundo: Veja, UOL
Instituto Cactus + AtlasIntel — Pesquisa Saúde Mental 2023: AMB
Cobertura sobre uso de medicação e terapia: Correio Braziliense, iG Saúde
Conselho Federal de Farmácia (CFF) — Dados sobre vendas de medicamentos: CFF